Storytelling e Linguagem: o Guia Básico do Filmmaker

Provavelmente, nem nos seus banhos mais longos sua mente chegou numa pergunta tão peculiar. Mas uma pessoa muito importante já pensou nisso: Noam Chomsky.


Se você fez Letras na faculdade, você conhece ele como o pai da Linguística Moderna pela sua interpretação única da linguagem humana: um atributo inato e biológico que é compartilhado por todos nós. Ou seja, para Chomsky, se um marciano viesse na Terra ele veria todas as línguas do nosso planeta como "sotaques" de um mesmo sistema de linguagem universal da espécie humana. (Para aprender mais, leia esse texto sobre Chomsky na Revista Galileu)


Por que estamos te contando isso? Porque queremos que você comece a repensar o conceito de linguagem e comunicação, e como utilizá-los em seus vídeos para um melhor storytelling.


A diferença entre comunicação e linguagem


Enquanto a comunicação é entendido como um conceito mais simples, observado em animais e humanos, de transmissão de significado, a linguagem é algo muito mais complexo. Linguagem é um sistema verbal e não verbal de símbolo, signos e sinais que estruturam a maneira como comunicamos pensamentos e ideias. E como filmmakers, temos acesso a muitas linguagens em nossos vídeos: verbal, imagética, sonora, simbólica, popular, dentre tantas outras.


A vantagem que o cinema possui sobre outras mídias é a capacidade de juntar muitas linguagens diferentes em torno de uma mesma ideia, e reforçá-la sob todos os aspectos. Vamos entender melhor com um exemplo: a espera de Manuela por seu filho no filme "Tudo Sobre Minha Mãe".



mulher loira com sobretudo vermelho



Imagem: filme "Tudo Sobre Minha Mãe" de Pedro Almodóvar.


No long shot acima, vemos Manuela, a personagem principal, esperando seu filho na saída do teatro na frente do pôster da peça "Um Bonde Chamado Desejo". Ao olharmos com desatenção, parece uma cena parada e sem significado para a narrativa, porém percebemos muito mais se decidirmos analisar melhor a cena em contexto com a história.


Pensando que o filme é sobre a vida de Manuela após a morte do seu filho, Estéban, e sua busca por significado no passado e em sua vida antes do nascimento do garoto, essa cena pode ser interpretada como uma representação visual da história. Ela, sozinha, com uma casaco vermelho, símbolo do amor e intensidade, espera pelo filho na frente do pôster da peça em que ela atuou quando era mais nova junto do pai dele. Porém, o pai é na verdade uma travesti que atuou no papel feminino principal, o mesmo da atriz do pôster.


Essa é a diferença principal entre comunicação e linguagem. Enquanto que pela ótica da comunicação isso é apenas uma mulher em uma parede vermelha, pela linguagem essa é uma interface de diversos significados que se entrelaçam e contam uma história.


O que é storytelling


Dando continuidade, o papel do filmmaker é se utilizar deste conhecimento para contar uma narrativa, que de acordo com o dicionário é a "exposição de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos mais ou menos encadeados, reais ou imaginários, por meio de palavras ou de imagens". Ou seja, como filmmakers nós transformamos ideias em imagens e sons para que tenham um apelo sensorial e narrativo nas pessoas.


Diferentemente do livro, em que toda a narrativa será por meio da linguagem escrita, nós temos que concatenar vários meios para que juntos criem essa narrativa. E para isso, temos que desenvolver um trabalho que pense no macro tanto quanto no micro.


Como explorar suas linguagens para um storytelling mais coerente


Para que você potencialize suas linguagens em serviço do storytelling é importante que você entenda o papel de cada uma na sua visão final. Em outras palavras, uma paleta de cores linda junto de um um cenário lindo não fazem sozinhos uma narrativa coerente porque pode ser que nada esteja ligando essa paleta e esse cenário a um objetivo principal.


Para isso você precisa se perguntar algumas perguntas-chave que só você pode formular.


Mas aqui vão algumas sugestões:

  • O que esse vídeo está tentando passar?
  • O que eu quero que a pessoa tire dessa experiência?
  • Qual o sentimento primário que guia essa visão?
  • Qual sensação física eu quero eliciar?
  • E qualquer outra pergunta que te ajude a entender o porquê e o que você quer.

Depois desses passos é que você pode começar a tomar decisões estéticas, porque agora você sabe o que elas estão tentando alcançar. Agora, a sua paleta de cores não é azul apenas por ser bonita, mas por você querer potencializar o sentimento de frieza e racionalidade do protagonista, por exemplo.


Como estruturar sua visão estética para uma produção mais eficiente


Agora que já entendemos a diferença entre comunicação, linguagem e storytelling e como criar uma linguagem coerente, precisamos estruturar esses processos para que fiquem claros e acessíveis ao longo de toda a produção.


Sugerimos que você crie um documento central de organização, mas existem milhares de maneiras em que essa organização pode ser feita, além de compreendermos que esse é um processo de caráter pessoal. Então, daremos apenas alguns princípios básicos que compõem uma boa estratégia para que você possa se guiar e ajustar o seu estilo pessoal. São eles: redundância, acessibilidade, legibilidade e especificidade.


Redundância


O primeiro princípio de um bom plano, principalmente quando falamos de escolhas estéticas de difícil caracterização, é a redundância. O que queremos dizer com isso é: repita informações, por mais óbvias ou repetidas que pareçam.


No moodboard, storyboard, roteiro ou qualquer outro documento importante, repita as informações que são vitais para você, seja a trilha sonora, shot, paleta de cores, expressão, tom, ou qualquer outro aspecto que você considere um diferencial do seu produto final. Por exemplo, você sabia que o diretor Edgar Wright colocou as músicas da trilha sonora em formato de link dentro do roteiro de "Em Ritmo de Fuga"? Isso porque o filme depende das canções para manter seu ritmo, e era impossível para o diretor que alguém lesse o roteiro sem esses trechos de músicas tocando ao fundo.


Ademais, a redundância se torna ainda mais importante se você trabalha em times, em que as pessoas nem sempre lêem todos os documentos ou mesmo todos esses documentos inteiros. Vamos repetir de novo? Repetição.


Legibilidade


O seu método de organização não pode ser desorganizado, não é mesmo?


Com legibilidade, queremos dizer que ele é um documento:

  • Indexado: apresente no início o que tem nele e a ordem em que esses blocos estão organizados;
  • Dividido: crie blocos de informações toda vez que mudar de temática para que você consiga consultá-lo com facilidade;
  • Compreensível: escrito em norma padrão culta para que qualquer pessoa que leia entenda. Isso é importante porque é quase impossível que esse documento não passe por outras mãos ou que você não vá usar as informações nele para explicar o projeto para outras pessoas.


Acessibilidade


Quando uma informação não fica acessível, nós nos contentamos em lembrar de cabeça. E erramos por causa disso.


Deixe as informações que você precise em lugares em que elas serão facilmente acessadas e que podem ser referenciadas a qualquer momento. E, de novo, isso é ainda mais importante se você trabalha em equipe. A acessibilidade mantém todos em torno de um mesmo fluxo e te resguarda de responder perguntas que já estão respondidas.


Quem sabe salvar como plano de fundo do celular uma lista de essenciais ou imprimir uma cópia do roteiro para todos os envolvidos do projeto?


Especificidade


Fale para alguém que sua cor preferida é azul e ela vai te pensar em todos os azuis do mundo, menos o seu preferido.


É importante que seu documento seja específico para que você tenha foco e assertividade durante as gravações, além de conseguir criar uma visão forte desde o início. Ou seja, especifique cores, texturas, iluminações, shots, ideias e tudo o mais que conseguir pensar com o máximo de exemplos concretos possíveis.


Assim, você não só perde menos tempo na gravação, como estrutura o seu pensamento em volta de ideias muito mais bem formadas e reais.


Com todas essas técnicas esperamos que você tenha conseguido desenvolver sua percepção para as infinitas possibilidades de comunicação dentro de um filme e como estruturar essas possibilidades dentro de planos concretos. Agora, se um marciano chegar na Terra, você está mais do que pronto para mandar seu pitch!